Candidatos autodeclarados negros são reprovados em cotas raciais de concursos no DF

Recém aprovado em concurso e estudante relatam sentimento de ter identidades negadas. Procurado pelo g1, Cebraspe informou que candidatos que solicitam concorrer às vagas reservadas para negros são submetidos à verificação de fenótipo.

9 de maio de 2024 48 visualizações
Postado 2024/05/09 at 11:37 AM
Foto: Arquivo pessoal

O recém aprovado em um concurso público Iure Marques, de 31 anos, e a estudante Ana Karolina, de 17, relatam dividir o mesmo sentimento: ter suas identidades negadas por uma banca examinadora. Eles são moradores do Distrito Federal e viveram situações parecidas. Ao passarem pela etapa de heteroidentificação, não passaram como cotistas mesmo se autodeclarando negros.

Foto: Arquivo pessoal
  • Iure passou em todas as fases do concurso para ser advogado da União, mas foi reprovado na fase de heteroidentificação, em abril deste ano. Ele chegou a entrar com recurso, mas foi indeferido;
  • Já Ana Karolina foi reprovada na heteroidentificação do vestibular da Universidade de Brasília (UnB). Ela também entrou com recurso, que foi aceito. Mas conta que todo o processo a fez duvidar de si mesma (veja detalhes mais abaixo);
  • A banca examinadora em que houve as reprovações dos cotistas foi o Cebraspe.

Procurada pelo g1, a banca informou que todos os candidatos que solicitam concorrer às vagas reservadas aos candidatos negros são submetidos à verificação do fenótipo — procedimento que visa analisar se o participante tem um conjunto de características fenotípicas da pessoa negra.

“Registra-se que aproximadamente 80% dos candidatos autodeclarados negros têm sua condição confirmada pela comissão de heteroidentificação nos processos seletivos realizados pelo Cebraspe. Dos que não são considerados negros, cerca de 5% têm sua situação revertida por meio da etapa recursal”, informou a banca.

A professora da Universidade Católica de Brasília (UCB) e pesquisadora de relações étnico-raciais e de gênero Kelly Quirino explica que o sistema de cotas e a etapa de heteroidentificação são fundamentais no processo de reparação história com a população negra. Mas pondera que alguns mecanismos podem e devem ser aprimorados.

“A gente precisa levar em consideração o colorismo, que é um sistema que quanto mais escura uma pessoa é, mais ela sofre. Porém, a gente está falando de pessoas que são afrodescendentes. Elas sofrem com os efeitos do racismo, elas sofrem violência. Às vezes, a pessoa não tem uma pele tão escura, mas ela é criticada pelo tamanho da boca, pelo formato do nariz, pelo cabelo ser crespo”, diz a especialista.

‘Emocionalmente fragilizado’

Foto: Reprodução

Iure conta que é filho de uma mulher preta, mãe solo, que por sua vez é filha de uma mulher indígena e um homem negro. Egresso da rede pública de ensino do DF, ele se formou em direito pela UnB. Hoje, ele trabalha no Tribunal de Justiça do DF, cargo que, segundo ele, foi conquistado por meio das cotas.

O servidor público afirma que passar no concurso de advogado da União seria um passo além. “Quando eu fui passando pelas etapas do concurso, achei que o mais difícil eu tinha conquistado. Estávamos muito felizes e confiantes, porém, na banca de heteroidentificação, última etapa do concurso e justamente na fase em que eu estava menos preocupado, sobreveio esse resultado surpreendente“, relata ele.

“Eu nunca tive minha negritude questionada. Sou de Brasília e onde quer que eu vá nesta cidade, sou reconhecido como negro. Quem é negro sabe o que significa esse reconhecimento. A reprovação no resultado preliminar da banca já me abalou bastante. Emocionalmente eu me vi bastante fragilizado, pois é um resultado que atinge diretamente a minha identidade”, diz Iure.

Depois de ter o recurso negado, Iure diz que se prepara para entrar com uma ação judicial para lutar por sua vaga no concurso.

“O sentimento de injustiça é muito grande, eu não queria me aproveitar das cotas, somente queria exercer um direito que me cabe. […] Eu me olho no espelho e fico tentando encontrar os traços brancos que foram imputados a mim. É uma situação dilacerante”, desabafa.

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Crise de identidade

Foto: Reprodução

Ana Karolina diz que, quando foi negada no processo de heteroidentificação, a justificativa da banca foi de que ela tinha “pele clara, cabelo liso e traços finos”.

Em seu recurso, ela argumentou que, na verdade, tem pele escura, cabelos cacheados, nariz achatado e lábios cheios, e que suas características podem ser averiguadas por meio da filmagem que é feita durante a avaliação da banca.

“Além disso, minhas vivências são de uma mulher negra, a qual teve sua pele, seu cabelo e sua capacidade questionadas por causa de suas características. Neguei me esconder, alisar meu cabelo e concordar com a sexualização precoce por que passei. O racismo nas ruas, e até mesmo na escola, são velados, mas cravam o peito de quem o sofre”, diz a estudante, que hoje cursa medicina na UnB.

Embora o recurso tenha sido aceito, Ana Karolina diz que enfrentou uma crise de identidade quando seu direito às cotas foi inicialmente negado.

“Literalmente fiquei em uma crise de identidade, chorei horrores. Eu fiquei sem palavras, porque eu não sou branca, não sou amarela e nem indígena, então eu sou negra! Não tem a mínima possibilidade disso ter ocorrido de forma coerente”, afirma.

Falta de letramento racial

A especialista em questões étnico-raciais Kelly Quirino explica que ser branco em uma sociedade racista é ter privilégios; ser negro em uma sociedade racista é sofrer violências, perder direitos, estar na base da pirâmide e ser criminalizado.

“As banca do heteroidentificação beneficiam a população negra e é muito importante que ela continue existindo, pois elas corrigem distorções e impedem que pessoas lidas como brancas se beneficiem das cotas raciais. Agora, elas podem ser melhoradas? Sim”, diz a professora.

Segundo Kelly, além da questão do colorismo, também é preciso considerar as regionalidades do Brasil. Ela também afirma que a falta de letramento racial afeta diretamente a população negra.

“Falta pras bancas de heteroidentificação mais letramento, mais leitura, mais questionamentos em relação ao colorismo. As pessoas precisam ler mais. Precisam ler Abdias do Nascimento, Maria Beatriz Nascimento, Djamila Ribeiro, Carla Akotirene. Acho que isso ajuda muito a entender a complexidade do que é ser negro no Brasil”, diz.

No entanto, Kelly ressalta que a política das cotas raciais é extremamente positiva e, graças a ela, a cor da universidade e do serviço público tem mudado.

“As instituições do nosso país têm que se parecer com o nosso país, que é um país diverso, plural, com diferenças. O sistema de cotas pode ser aprimorado, mas ele não pode acabar, porque você ainda tem grande parte da população negra com os piores indicadores sociais do nosso país, e as cotas estão aí para corrigir esse tipo de coisa”, pontua.

Fonte: G1 DF

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