Tortura e transfobia: Penitenciária Feminina do DF é denunciada em órgão internacional

Uma jurista apoiada por associações de direitos humanos protocolou uma petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) denunciando práticas de tortura e transfobia contra presos na Penitenciária Feminina do Distrito Federal — conhecida como Colmeia.

A ação foi protocolada pela advogada Soraia Mendes há uma semana, em 19 de fevereiro. A CIDH agora vai analisar e investigar as denúncias.

O documento traz relatos da mãe de um detento trans, e inclui incitações de ataques e motins contra o filho e seu companheiro, entrega de alimentos estragados, xingamentos e privação de atendimento jurídico (veja detalhes mais abaixo).

Em nota, o governo do Distrito Federal (GDF) disse que “apura, junto aos órgãos de controle ou de forma autônoma, todas as irregularidades imputadas ao sistema penitenciário do DF” (veja íntegra ao final da reportagem).

Conforme a denúncia, os ataques foram cometidos entre 2019 e 2023 por 20 agentes penais que atuam na Colmeia e se envolveram direta ou indiretamente nas violações. O documento aponta que a então diretora da penitenciária, Narjara Cabral, exonerada em 2022 após denúncias de ameaças e descumprimento de protocolos na unidade tinha conhecimento das práticas de tortura e transfobia.

Conforme os relatos da mãe do preso, a ex-diretora “incitava” as demais presas a atacar o casal.

“Informou ainda, que a diretora da Penitenciária incita outras sentenciadas a realizarem motins e culpar as sentenciadas já que são companheiras”, diz o documento.

Segundo o Portal da Transparência, a policial penal Narjara Cabral continua na ativa e trabalha atualmente no Centro de Detenção Provisória II, na Fazenda da Papuda (veja imagem abaixo). O g1 não conseguiu falar com Narjara.

Portal da Transparência mostra situação ativa da policial penal Narjara Cabral — Foto: Reprodução/Portal da Transparência
Portal da Transparência mostra situação ativa da policial penal Narjara Cabral — Foto: Reprodução/Portal da Transparência

Nesta terça-feira (27), questionada sobre a servidora, a Secretaria de Administração Penitenciária (SEAPE) não respondeu até a publicação desta reportagem.

O g1 também pediu autorização para entrar nos presídios e entrevistar custodiados trans, mas não conseguiu aprovação da Vara de Execução Penais (VEP), vinculada ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT).

Violações de direitos

Em abril de 2022, a pedido da mãe de um dos presos, a Defensoria Pública protocolou um pedido de providências junto à Vara de Execuções Penais do Distrito Federal (VEP/DF), apontando alguns dos ataques sofridos pelo filho trans.

“Informa que a sentenciada deseja cortar os cabelos, contudo, mesmo já tendo se manifestado favorável pelo corte mais curto, a direção do presídio a informou que caso ela corte o cabelo poderá responder por falta disciplinar”, diz o relato.

A mulher denunciou também que as cartas pessoais que enviava para o filho não eram entregues, mesmo com a confirmação de chegada da correspondência pelos Correios. A Vara de Execuções Penais não respondeu ao pedido da Defensoria e novamente, em julho de 2022, a mãe do detento fez um novo pedido à Vara com mais denúncias (veja abaixo).

A VEP disse que os sentenciados são mantidos “em ala e celas separados do restante da massa carcerária para o resguardo de suas integridades físicas”. Sobre as denúncias, a Vara de Execuções Penais informou que recebeu os documentos e que “desde então os fatos seguem em apuração contando com a atuação do Ministério Público e da advogada”.

Alimentos estragados e agressões

No novo documento, a mãe do preso trans relata que os “alimentos recebidos por ele em sua cela chegam crus e com larvas” e que constantemente é agredido.

“Ademais, enfatizou que seu filho reclama constantemente de agressões, maus-tratos, homofobia e ameaças, mesmo estando em isolamento, e que deseja voltar para junto da massa carcerária, sendo alocado em cela comum”, diz a denúncia.

Em maio de 2023, após um culto religioso, os detentos receberam chocolates, mas um agente penal proibiu que os dois homens trans fossem presenteados e os ameaçou, conforme a mãe de um deles. “Não é para dar bombons para esses monstros. Elas têm é que morrer. Não merecem viver. Têm que morrer de qualquer forma”, teria afirmado o agente.

“Vão matar vocês ou vão morrer aqui dentro, pela mão da polícia ou de outras detentas. Vocês (agentes e internas do bloco) precisam saber o que essas monstras fizeram. Elas não são trans, são duas vagabundas, duas imundas, que ficam se escondendo com esse fingimento de ser trans. Não merecem ser trans”, complementou o agente, segundo denúncia da mãe do preso.

Ataques à advogada e privação de atendimento

Fachada da Penitenciária Feminina do DF, conhecida como Colmeia — Foto: TV Globo/Reprodução
Fachada da Penitenciária Feminina do DF, conhecida como Colmeia — Foto: TV Globo/Reprodução

Além disso, a denúncia enviada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos afirma que os dois homens trans passaram quase um ano sem atendimento jurídico presencial, porque o nome deles não era listado entre o dos detentos que poderiam receber apoio da Defensoria Pública.

“Apesar de devidamente habilitada nos autos, a lista de pessoas detentas autorizadas a receber o atendimento jurídico pela Defensoria Pública é corpo funcional do próprio presídio. De maneira que as vítimas permaneceram, repetimos, 1 (um) ano, sem acesso à defesa, em razão da aparente ‘falta sorte’ no momento da elaboração das listas”, afirma a advogada Soraia Mendes que fez a denúncia.

g1 entrou em contato com a Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF) que respondeu que o preso em questão tem advogado particular que é quem responde pela defesa. Sobre o tempo para que o preso seja atendido pelo órgão, a Defensoria Pública disse que “é variável e depende de diversas questões”.

A DPDF informou também que realiza atendimentos regulares e mutirões, e que consegue assistir todos que solicitam atendimento.

A advogada de defesa do casal preso afirma que sofreu “ameaças” e “intimidações” por ser uma mulher lésbica tentando defender os clientes. Em um dos casos, o preso se queixou que não era atendimento pelo Núcleo de Saúde da penitenciária e a advogada solicitou o prontuário clínico do paciente. Após saber de quem era a solicitação dos documentos, o preso recebeu uma ocorrência administrativa por “comportamento inadequado de advogada”.

A denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos contou com o apoio do Comitê para América Latina e o Caribe de Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM), da Pastoral Carcerária Nacional e do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e Gênero (GADVS).

Pessoas trans nas prisões do DF

Como mostrou o g1 em dezembro do ano passado, de um total de 15.484 presos atualmente no DF, 75 são pessoas trans. Segundo dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), essas pessoas estão distribuídas em cinco penitenciárias:

Número de pessoas trans no sistema penitenciário do DF

PresídioTravestisMulheres transgêneroHomens transgênero
PDF II1500
CIR080
PFDF01712
PDF I6010
CDP II250
CDP I000
CPP000

Fonte: Secretaria de de Administração Penitenciária do Distrito Federal (Seape/DF)

Legislação

Para a proteção dos direitos da população trans dentro dos presídios, a Resolução nº 348/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é o guia para a atuação do sistema de Justiça no âmbito criminal.

A proposta estabelece diretrizes para o tratamento da população LGBTQIA+ que seja custodiada, acusada, ré, condenada, privada de liberdade, em cumprimento de alternativas penais ou monitorada eletronicamente. Confira abaixo alguns pontos abordados pela resolução:

  • Autordeterminação e dignidade: garantia às mulheres transexuais e travestis do direito de utilizar vestimentas lidas socialmente como femininas, manter os cabelos compridos, inclusive extensão capilar fixa e o acesso controlado a pinças e a maquiagem. Para os homens transexuais, garantia de usar vestimentas socialmente lidas como masculinas e acessórios para a compressão de mamas.
  • Assistência à saúde: garantia de atendimento psicológico e psiquiátrico, considerando o agravamento da saúde mental dessa população, especialmente voltado à prevenção do suicídio, bem como tratamento ginecológico, urológico e endocrinológico especializado para pessoas transexuais, travestis e intersexo durante todo o período de privação de liberdade.
  • Escolha da unidade prisional: indagar à pessoa parte da população transexual acerca da preferência pela custódia em unidade feminina, masculina ou específica, se houver, e, na unidade escolhida, preferência pela detenção no convívio geral ou em alas ou celas específicas, onde houver.

O que diz o GDF

“A Seape/DF apura, junto aos órgãos de controle ou de forma autônoma, todas as irregularidades imputadas ao sistema penitenciário do DF, que apresentem elementos mínimos de materialidade e autoria.

Os contratos de alimentação das refeições servidas nas unidades prisionais são objeto de extrema diligência por parte dos gestores desta Pasta, tendo em vista que o fornecimento de uma alimentação de boa qualidade é um dos aspectos contratuais a serem seguidos pelas empresas contratadas.

Cada unidade prisional realiza relatórios três vezes por semana sobre as condições gerais dos alimentos disponibilizados pela empresa contratada. São observados temperatura, armazenagem, gramatura item a item e se o cardápio contratado está sendo respeitado.

Além disso, Seape/DF conta com uma junta de executores que acompanham semanalmente, junto às nutricionistas das empresas contratadas, a gramatura, temperatura, qualidade e armazenagem dos itens disponibilizados para alimentação dos reeducandos como prega o Contrato de Prestação de Serviços Nº 038/2020-SSPDF. Estas fiscalizações são acompanhadas pelo poder público e tem correlação direta com o princípio da dignidade da pessoa humana e outras normas de matriz constitucional. Como doutrina a PORTARIA Nº 08, DE 14 DE JANEIRO DE 2021 e PORTARIA Nº 50, DE 16 DE FEVEREIRO DE 2022.

Esta pasta reforça que atua ininterruptamente pelo bom cumprimento da execução penal baseada na legalidade e na preservação inegociável dos direitos humanos da pessoa presa.”

Fonte: G1

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