Anulação do Júri da Boate Kiss: impunidade ou respeito às “regras do jogo”?

5 de agosto de 2022 603 visualizações
Postado 2022/08/05 at 12:13 PM

Sexta-feira, 10 de julho de 2021, passados 8 anos do incêndio da Boate Kiss, que resultou na morte de 242 pessoas e deixou 636 feridas fisicamente e emocionalmente, o sofrimento e a ânsia por justiça dos familiares das vítimas parecia ter chegado ao fim, 4 réus foram condenados pelo incêndio da Boate.
Entretanto, a calmaria após a tempestade foi muito breve!

No dia 3 de agosto de 2022, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul anulou o júri que havia condenado Elissandro Sophr, Mauro Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha pelos crimes de homicídio e tentativa de homicídio simples com dolo eventual pelas mortes e feridos em Santa Maria.

Mais uma vez a impunidade parece reinar no Brasil, o país tropical, mas será realmente caso de impunidade ou, como veremos, o “respeito às regras do jogo”? O respeito aos princípios do Processo Penal?

A anulação do júri se deu pelo reconhecimento, por dois votos (desembargadores José Conrado Kurtz de Souza e Jayme Weingartner Neto) a um (desembargador Manuel José Martinez Lucas), de uma série de nulidades, apontadas pela defesa, que ocorreram durante o julgamento da Boate Kiss e que macularam por completo a condenação dos réus. Pois bem, vejamos alguns das nulidades reconhecidas pelos desembargadores e que atacaram frontalmente o princípio da ampla defesa.

Primeiramente, apontou-se a nulidade na realização dos sorteios para a seleção dos participantes do júri, os quais – segundo o artigo 433, § 1º, do Código de Processo Penal – só podem ser realizados até o 10° dia útil antecedente ao início das sessões de julgamento. Não obstante a força da norma, a 3ª sessão de sorteio foi realizada com apenas 4 dias úteis de antecedência em relação ao início da sessão.

Além da realização tardia do sorteio, também foi demonstrado que o Ministério Público se beneficiou do acesso a uma série de banco de dados para consulta e análise das características e vida pretérita dos jurados, benesse que não foi franqueada à defesa dos réus, impedindo-os de analisar possíveis causas que levassem a parcialidade dos jurados. Ora, tendo o sorteio sido realizado fora do prazo e permitindo-se o acesso exclusivo do MP aos referidos bancos de dados, ignorou-se os mais básicos postulados do Direito Processual, entregando às moscas o direito dos réus à plenitude de defesa, ocorrendo, nos dizeres do desembargador Jayme Weingartner Neto, “clara disparidade de armas”
.
Em segundo lugar, foi realizada sessão a cortinas fechadas entre os membros do júri e o seu juiz presidente. Não bastando a gravidade do ato, a existência da mesma não foi – durante as sessões de julgamento – levada ao conhecimento nem da defesa e nem do MP, impedindo que eles viessem a contestar a realização da conversa. É impossível entender como válido tal acontecimento, nada que aconteça no plenário pode ser realizado às ocultas dos atentos olhos das partes.

Em terceiro, a acusação apresentou uma maquete virtual do interior da Boate Kiss, local da tragédia, o que a priori – por ter sido apresentada dentro do prazo e conforme outros ditames normativos – aparentava ser plenamente válida. Não obstante, o acesso à maquete virtual exigia a utilização de sistemas de computação de alta complexidade e profundidade, inacessíveis à defesa e, consequentemente, violadora do artigo 479 do CPP, haja vista ter sido apresentada no plenário sem a prévia ciência de uma das partes. Não se pode admitir prova surpresa, não apresentada previamente aos interessados.

Outros foram os atos nulos do julgamento, mas os até aqui apresentados já nos permitem concluir que não se trata do fomenta a uma cultura de impunidade, mas de combate ao “desrespeito às regras do jogo”, combate às violações aos princípios que dão forma ao Processo Penal.

Claro é que se deve punir – nos dizeres do professor Aury Lopes Junior, “você pode punir, punir é necessário, é civilizatório, mas é preciso respeitar a regra do jogo […] não se combate crime, cometendo crime” – mas não se pode punir uma violação da lei, violando a própria lei.

Portanto, a anulação do Júri da Boate Kiss é absolutamente pedagógica, restaurando e deixando clara a necessidade de – apesar da gravidade das condutas dos réus – seguir as normas estabelecidas pela Lei, evitando-se que ocorra o que se passou com Josef K, personagem da obra “O Processo”, de Franz Kafka, que submetido a um processo e julgamento sem qualquer acesso ao conteúdo da acusação, sem conhecer o seu acusador, sem a possibilidade de se defender e sem gozar da ampla defesa – acaba sendo tratado, em seus próprios dizeres, “como um cão!”, ceifado da dignidade natural dos seres humanos.

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