Já célebre pela discussão filosófica e literária, a frase de Dostoiévski pode servir à discussão em inúmeras circunstâncias: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. O russo Vladimir Putin testa hoje o que lhe é permitido na fronteira terrena ao invadir a Ucrânia sem medo do inferno. Antiga força semiceleste do equilíbrio mundial pós-segunda guerra, os Estados Unidos tentam manter a ordem intacta sem usar a força das armas. A sacra linguagem do presidente americano Joe Biden não aquece o sangue siberiano de Putin.
A citação acima é do romance Os Irmãos Karamazov, cuja temática abordava os impactos da religião e de políticas radicais do século 19, contaminado por muito fanatismo e voluntarismo. Isso rompia os valores caros ao escritor russo: a religião, o czarismo e a ordem familiar tradicional. Denunciar arroubos de radicais russos daquele tempo globalizou a literatura de Dostoiévski, repetida também em Crime e Castigo e em Os Demônios.
Esse último livro é inspirado num fato real, um assassinato de um inocente praticado por grupo de estudantes incentivado pelo niilista Nietchaiev, em 1869. Bakunin assim descreveu o revolucionário: “Quando se trata de servir ao que ele chama a causa, não hesita: nada o detém, e é tão impiedoso consigo mesmo quanto com todos os outros (…) É um fanático devotado; mas ao memo tempo um fanático muito perigoso…” Não é uma descrição de Putin, mas em parte poderia ser.
Como os grandes gênios, Dostoievski já trabalhava com o leitmotiv dos limites do homem sem a presença da religião. Em Os Demônios, o personagem Kirilov coloca a hipótese: “Se Deus existe, então toda a vontade é Dele, e fora da vontade Dele nada posso. Se não existe, então toda a vontade é minha e sou obrigado a proclamar o arbítrio”. O personagem mergulha numa divagação suicida, mais ou menos como vários países tentaram fazer na geopolítica internacional nestes tempos ainda muito estranhos.
O pequeno Putin não é um suicida, nem parece num fanático. É prático, organizado, metódico. Controla o poder com cálculo e entendeu que a maioria do povo russo gosta de um autocrata, mas buscou se consolidar com tempo — o que lhe deu até ares democráticos por breve período. Putin iniciou sua carreira ainda nos tempos da União Soviética. Viu o país se dividir e declinar. Pegou o que restou. E não é pouco. É o maior território do mundo.
A Rússia está entre a Europa, Ásia e Oriente Médio. E tem imenso arsenal atômico. Sua longa história é marcada por invasões, expansionismo e contração após a queda do Muro de Berlim. Teve conflitos em todas fronteiras, com várias etnias — o que gerou uma psiquê desconfiada. Passou por ditadores como Ivan, o Terrível, e Stalin, na verdade nascido na Geórgia e que, quando revolucionário, adotou o premonitório codinome de Biesochvilli (demônio, tal como o romance o escritor russo).
Ao ver a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) se mover para a vizinha Ucrânia, Putin encontrou terreno para jogar contra todos os planos com razão estratégica. E isso num momento em que os Estados Unidos já são desafiados do ponto de vista econômico com a ascensão da China. Os xerifes do mundo passam a impressão de cansaço, desgastes depois dos erros sequenciais no Iraque, na Síria e no Afeganistão, muito mais custosos e sem garantia de sucesso. O mundo não ficou mais seguro depois dessas incursões. Futuras ações com pretexto heróico não estão em alta nas bandas de Tio Sam.
Ainda que a Europa e EUA usem fortes sanções econômicas contra a Rússia, o país é essencial no fornecimento de petróleo e gás para os europeus. Sob os encantos da agenda verde, a Alemanha liderou o desligamento das usinas nucleares e ficou nas mãos dos diabólicos gases russos. E isso não pode ser desprezado.
As agressivas reações diplomáticas ocidentais empurram Putin para o colo de Xi Jinping, o presidente da China, que se alinhou aos interesses russos porque tem os seus próprios, uma Hong Kong que volta e meia se rebela em protestos democráticos como se ainda fosse inglesa, e Taiwan, a ilha promissora e independente desde que o comunista Mao Tsé-Tung tomou o poder no continente.
A guerra e as mortes podem ficar só na Ucrânia. O mundo, entretanto, parecerá mais com o período da guerra fria, onde os blocos de influência eram mais evidentes, atuantes e o globo era bem mais dividido. Só que agora ocidente e oriente mais distantes.
No Brasil, a hora é de ser solidário a seus próprios interesses. E tomar cuidado, porque o escritor russo já ensinou que não há crime sem castigo. E torcer para que não haja nenhum suicida nesta história para agravar ainda mais o quadro internacional.
Por Márcio de Freitas